4 de março de 2008

De um coração [quase] selvagem



Sobretudo no momento em que a tocara, compreendera: o que se seguisse entre eles seria irremediável. Porque quando a abraçara, sentira-a viver subitamente em seus braços como água correndo. E vendo-a tão viva, entendera esmagado e secretamente contente que se ela o quisesse ele nada poderia fazer... No momento em que finalmente a beijara sentira-se ele próprio de repente livre, perdoado além do que ele sabia de si memo, perdoado no que estava sob tudo que ele era...


Daí em diante não havia escolha. Caíra vertigiosamente de Lígia para Joana. Sabendo disso ajudava-se a amá-la. Não era difícil. Uma vez ela se distraíra olhando pelo vidro da janela, lábios soltos, esquecida de si mesma. Ele a chamara e o modo suave abandonado como ela voltava a cabeça e dissera: hein?, fizera-o cair dentro de si mesmo, mergulhando numa tonta e escura onda de amor. Otávio voltara, então o rosto para o lado, não querendo vê-la.


Quando Otávio a beijara, segurava-lhe as mãos, apertando-as contra seu seio, Joana mordera os lábios a princípio cheia de raiva porque ainda não sabia com que pensamento vestir aquela sensação violenta, como um gruto, que lhe subia do peito até endoidecer a cabeça. Olho-o sem vê-lo, os olhos nublados, o corpo sofredor. Precisavam despedir-se. Afastou-se bruscamente e foi embora sem se voltar para trás, sem saudade.


Depois, cessou a felicidade. A plenitude tormou-se dolorosa e pesada e Joana era uma nuvem prestes a chover. Respirava mal como se dentro dela não houvesse lugar para o ar. Caminhava de um lado para o outro perplexa com a mudança. Como? - perguntava-se e sentia que estava sendo ingênua, aquilo tinha dois lados? Sofrer pelo motivo que a tornara terrivelmente feliz?




Clarise Lispector- Perto do coração Selvagem.
Foto de Kazuo Okubo.

3 comentários:

O Profeta disse...

Tu és uma escritora fantástica...a blogoesfera é pequenina para ti...


Doce beijo

Pedro Gabriel disse...

Clarice realmente é incrível

;-)

brigado pelas visitas,
beijoss

Sam disse...

Sempre existe um "mas"... deixamos escapar as poucas chances que nos aparecem, que de tão boas, tão belas, nos sufocam de tanta felicidade, e por não estarmos habituados a isso nos assustamos e colocamos tudo a perder.

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